“Distância de Resgate”: Samanta faz um romance à la Beckett sobre obsessões da materidade

Distância de Resgate, romance de estreia da autora argentina, parte do encontro entre duas mães para compor suspense

Samuel Beckett, um dos maiores dramaturgos e escritores do século XX, fazia questão de escrever com o mínimo. Pode-se dizer que, diante da narrativa de uma história ocidental moderna que parecia chegar ao fim, Beckett acreditava que seria na dissolução da forma da arte que poderíamos ancorar nossas subjetividades. 

A arte, para Beckett, não é o lugar da exposição de um eu, mas sempre de um outro, de uma voz, de um coro anônimo, de uma (i)materialidade que fala quando o som sai. Assim, o indivíduo para Beckett é um ser que só pode se completar através de uma “companhia”, um outro, ao mesmo tempo trágico e cômico, que reduplica o enunciado da fala e o transforma em matéria sonora, verbal e visual. 

Usei o termo “companhia” lá em cima porque este é o nome que Beckett dá a um de seus textos menos conhecidos, mas que expressam bem essa relação entre um desindividuação na dissolução de um ser no outro. Companhia é um texto que começou a ser escrito em 1977 e nos apresenta um ser deitado em um ambiente absolutamente escuro. Este sujeito imóvel, que não tem a percepção nem do próprio corpo, escuta uma voz que lhe conta coisas de uma vida. A sua?

Nesta relação, não sabemos sequer quem é protagonista e quem é a companhia: se o corpo ou a voz. Tampouco sabemos se o sujeito está pensando e aquela é uma voz interna dele ou se é realmente alguém falando: podem, simplesmente, serem duas pessoas ou uma pessoa só.

Fiz esta longa introdução falando de Beckett porque gostaria de colocar o primeiro romance da escritora argentina Samanta Schweblin na mesma tradição dos textos beckettianos. Neste primeiro livro chamado “Distância de Resgate”, publicado pela Editora Fósforo com tradução de oca Reiners Terron, curto como os textos de Beckett, Schweblin recorre ao uso de vozes em uma narrativa coral para compor uma cena trágica: Em uma cidade do interior da Argentina, uma mulher chamada Amanda passa férias com sua filha Nina. Próximo a sua casa, há um povoado em que elas conhecem uma mulher chamada Carla, que tem um filho chamado David. 

Num dia aparentemente tranquilo em que elas curtiam uma piscina, Carla faz um desabafo: seu filho tem um comportamento estranho porque foi acometido por uma doença misteriosa que se espalha inexplicavelmente pela região. Mas como nós sabemos dessa história? 

Schweblin constroi um romance tal Beckett construía suas narrativas: a partir de elementos mínimos que se acumulam e se recombinam. O que temos, e isto tudo é meramente especulativo, é: Amanda escuta a voz de David e dialoga com ele. David pede que ela conte o que aconteceu naqueles dias em que Carla lhe contava sua história. Assim, os passos são perpassados a limpo até tentarmos entender onde Amanda está e qual o papel de David nesta narrativa. 

Leia também: “Pássaros na boca e Sete casas vazias”: Samanta Schweblin entre o incomum, o fantástico e o grotesco

Tal como um monólogo interior, mas alucinado, cambiante, com uma algaravia de vozes, Distância de Resgate se apresenta como uma obra que recorre a um recurso que se aproxima da metalinguagem, mas a ultrapassa: é mais como um romance atômico que explode de um núcleo central e se espalha por todos os cantos como um big bang. Através desta força centrífuga, a narrativa mínima: uma voz conta o que outra voz pede, vamos mergulhando numa trama que se aproxima muito da narrativa insólita com pegadas de thrillers, suspense e casos de vida ou morte. 

Além disso, o romance possui um outro ponto narrativo que vale a pena mencionar que é o da maternidade, principalmente da ideia de uma maternidade compulsória. Aparentemente, esta doença que acometeu David estaria no ar porque algumas mães da região haviam pegado também. 

É a maternidade, inclusive, que inspira o título do livro: Distância de Resgate é o termo atribuído por Amanda à distância que ela precisava estar a todo o tempo de Nina, de acordo com o grau de segurança que cada lugar e ocasião demandaria, para que precisasse resgatar a filha de um possível perigo. Ou seja, se a filha estiver em uma piscina, a distância de resgate é menor porque ela pode sofrer um acidente, mas caso esteja vendo tv, a distância aumenta por conta de sua estabilidade e segurança. 

O interessante disto é que, tal como a Companhia de Beckett: o destino da mãe passa a ser traçado pela cartografia dos caminhos da filha, como se fios invisíveis de equações imaginárias amarrassem as duas a todo instante no que seria essa “distância de resgate”. Assim, mãe e filha seriam uma espécie de companhia constante uma da obra, uma presença nem sempre pacífica, mas obrigatória de convivência. 

Leia também: “Distância de resgate”: primeiro romance de Samanta Schweblin mergulha no suspense psicológico

Realmente inspirador, Distância de Resgate parece ser o primeiro ensaio de novas frentes que Schweblin traça em sua carreira. Embora ela seja especialista e genial nos contos, gênero que felizmente tem sido cada vez mais valorizado, a tarefa de romancear o mundo é também uma forma de experimentar as simulações de reais através de linguagens díspares. 


Distância de Resgate é um livro que pode soar difícil se for lido apenas pelo viés seu prumo estético, porém, diante de sua narrativa insólita, principalmente para quem lida com a maternidade, o romance pode se revelar um verdadeiro pesadelo, um pesadelo de quem encontra no outro uma espécie de maldição que salta principalmente quando olhamos para nós. Nossa companhia quase nunca está longe, está sempre em uma distância de resgate. Mas será que ela poderá mesmo nos resgatar?

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