Documentário de Débora Diniz e Eliane Brum acompanha a luta de uma mulher pernambucana pelo direito ao aborto em 2004.
Na crônica “O Milagre das Folhas”, Clarice Lispector descreve coincidência como “linhas que incidem uma na outra e se cruzam e no cruzamento formam um leve e instantâneo ponto”. Na bela crônica de Clarice, esse ponto é “leve e instantâneo”, “feito de pudor e segredo”. Diferentemente da experiência dessa personagem que, na crônica, divaga sobre milagres e coincidências ao ser tocada nos cabelos por uma folha que cai, não é sempre nem para todos(as) que a coincidência – essas linhas imprevisíveis que se cruzam – produz pontos leves. Algumas vezes, são nós imbricados de dor e luto.
No dia 20 de outubro de 2004, Severina Maria Leôncio Ferreira, gestante de 4 meses, estava internada. Ela aguardava no hospital para, no dia seguinte, iniciar o processo de interrupção da gestação de um feto com anencefalia, condição na qual o cérebro não se forma que torna inviável a vida da futura criança. Segundo o médico que a atendeu, a escolha por esperar o próximo dia se deu pelo fato de Severina ter dado entrada no hospital de noite; aguardando até o dia seguinte, ela poderia descansar antes do procedimento.
Acontece que, em 21 de outubro de 2004, os Ministros do Supremo Tribunal Federal derrubaram uma decisão liminar que permitia a interrupção da gestação em casos como o de Severina. Com cassação da liminar, não era mais permitida a antecipação do parto de fetos nesta condição e, deste modo, o hospital não poderia dar prosseguimento à intervenção.
Pensemos nas linhas que compõem a coincidência de Severina: uma gestação; um feto com anencefalia; uma internação; uma escolha por uma noite de descanso antes de um procedimento invasivo; uma mulher pobre; um país desigual; uma decisão judicial. O ponto tecido pelo entrecruzamento dessas linhas foi o que produziu a exaustiva jornada por parte de Severina e seu marido, Rosivaldo, pelas tramas do Direito e da Medicina.
Severina e Rosivaldo, pais de Walmir, de 4 anos, eram lavradores de brócolis no interior de Pernambuco. Por três meses, peregrinaram por entre as confusas vielas da Justiça em busca de uma autorização para acessar um procedimento médico que, em 20 de outubro de 2004, era possível, mas que depois das sustentações orais e votos dos eloquentes Ministros da Corte Suprema, tornou-se impossível. Algumas horas distanciaram Severina do acesso a um direito que lhe era devido.
A autorização chegou tarde, com a gestação já mais avançada, e com ela vieram novas batalhas para encontrar um local e profissional de saúde que realizasse o aborto. Entre objeções de consciência*, burocracias e negativas moralizadoras, Severina enfrentou muitas dificuldades para realizar o aborto; felizmente, ela teve em uma ONG, o Grupo Curumim, um aliado para ter acesso ao seu direito.
A História de Severina (2005), de Débora Diniz e Eliane Brum, narra os caminhos percorridos por Severina e seu marido diante das coincidências que teceram esse ponto brutal que não deixou com que seu sofrimento tivesse fim. O filme mostra que não foram somente coincidências que marcaram o caminho de Severina: à elas juntaram-se a violência, o julgamento, o moralismo e a negação do acesso a direitos reprodutivos.
Através de cordéis e rimas, o documentário acompanha a vida do casal diante da dura presença cotidiana de uma gestação inviável, suas visitas a equipamentos de saúde e cenas reais do julgamento do Supremo Tribunal Federal que selaram o destino de Severina. Com sensibilidade, o documentário consegue complexificar duas falsas afirmações sobre o aborto que, ainda que pareçam mutuamente excludentes e sejam frequentemente mobilizadas por campos políticos opostos, se compõem para simplificar o debate sobre o tema: a de que falar sobre o aborto banalizaria a discussão, popularizando o procedimento como método contraceptivo; e a de que “ninguém quer fazer um aborto” e que o procedimento necessariamente produz somente sofrimento.
A história de Severina mostra que o aborto não é sinônimo da recusa daquele filho. O carinho de Severina e Rosivaldo pela ideia da criança que aquele feto poderia se tornar caso não sofresse essa má-formação torna o percurso todo mundo penoso, marcado por um luto cotidiano que encontra seu auge na devastadora imagem de Severina com o bebê morto que depois é enterrado em um pequeno caixão de proporções impensáveis e indescritíveis. Mas, ao mesmo tempo, para Severina, assim como para outras pessoas que gestam, ainda que diante da dor da perda desse filho, o aborto era uma saída possível, justa, legítima. Severina queria o aborto, assim como queria seu filho. Essas não foram afirmações contraditórias para ela, assim como podem não ser para tantos outros casos, pois a vida é sempre marcada por ambivalências e complexidades.
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“Uma História Severina” é um documentário necessário, que amplia a discussão sobre o aborto e o coloca no campo dos direitos e da saúde, local onde ele deveria sempre estar. Através da história de Severina, Débora Diniz e Eliane Brum passam por todas as principais tensões que envolvem o tema no país, dos processos de judicialização às disputas morais no campo social.
*Objeção de consciência é a recusa em cumprir um dever legal com base em convicções éticas, morais, políticas e/ou religiosas.