“O Cão e os Caluandas”: Pepetela desvenda a Angola do pós-independência através da figura de um cão

No livro da editora Kapulana, o angolano Pepetela faz uso de um personagem em específico, um cachorro, para nos contar a história da Angola logo após a sua independência

Um dos conceitos mais interessantes e mais mal interpretados é o de “lugar de fala”. Ele não é jamais um argumento de autoridade, mas de localização sócio-histórica do sujeito que fala de modo a que não naturalizemos nenhum discurso como sendo neutro ou imparcial. Isto porque a neutralidade e a imparcialidade, historicamente, é um direito dado somente àqueles que detém a história, o dinheiro e o poder. 

Em literatura, o mais interessante disso, é que o lugar de fala pode fazer parte de um jogo cujo limite é a própria imaginação. 

Em O Cão e os Caluandas, por exemplo, o angolano Pepetela faz uso de um personagem em específico, um cachorro, para nos contar a história da Angola logo após a sua independência. Algum de vocês pode pensar que seria quase uma falta de respeito usar a ideia de lugar de fala que visa ampliar a voz de minorias para colocá-la na figura de um cão. 

Pelo contrário, acredito que essa tenha sido uma escolha minuciosa de Pepetela que visava contar a história de seu país, mas encontrar um “lugar de fala” que não fosse propriamente de lugar nenhum, que fosse uma espécie de figura errante, anônima, irracional que atravessaria o território entrando em contato com as mais diversas pessoas, de diversas classes, raças e posicionamento políticos. 

E mais, ele pretendia também que esses angolanos, ou estrangeiros em Angola, ou colonizadores que ainda estavam na terra ou imigrantes que lá estavam fossem fotografados sem que esse “lugar de escuta”, ou seja, aquele que fosse o espectador primeiro, não fosse alguém cuja presença alterasse a dinâmica de suas vidas. Assim, a escolha do cão permite o lugar mais privilegiado para estar no “lugar de fala” de quem conta a Angola: ele é, ao mesmo tempo, todos e nenhum. 

Porém, há quem possa dizer que estamos falando apenas de perspectiva de narração, de escolha de ponto de vista. Acho que cabe, sim, também, mas ressalto a ideia de lugar de fala para perceber que a escolha de Pepetela fez com que, também, nem a escolha do cão fosse isenta: trata-se de um pastor alemão, animal que não é natural daquelas terras – provavelmente veio importado pela colonização – assim como sempre foi utilizado como a figura de um “cão policial” pelo regime anterior. 

Cão, nem sei o teu nome – falei então. Mas vê-se mesmo és o resultado da luta de classes. Operarió camponês versus pequena burguesia […] Só sabes morder, abanar o rabo […] Portanto, tu perdeste a casa, a paparoca, tudo. Agora és vadio, proletário. Mergulhaste no seio do povo explorado cinco séculos”

Outra característica interessante dada a este cachorro por Pepetela é a sua metamorfose dependendo de quem ele está perto. Não que o cão mude de identidade, mas ele se torna uma figura porosa que é capaz de se adaptar aos mais distintos lugares. Além disso, este cão ganha também diversos nomes, recebendo alcunhas de acordo com características próprias vistas por donos específicos, ou seja, o cão é, a todo instante, um observador, mas também um observado.

Leia também: “As Aventuras de Ngunga”, de Pepetela: a literatura é a infância da história

Escritor angolano Pepetela

“qual então o fio da história? O cão? A toninha? O mar? Luanda? Ou tudo isso e que afinal era a vida boa daqueles tempos pouco depois da independência (anos hoje acinzentados pelos anos)…” 

Em paralelo às histórias narradas pelas figuras que encontraram o cão durante suas vidas, temos também pequenos excertos de narrativas que giram em torno de uma árvore: uma imensa buganvília que é plantada por uma família. A planta belíssima é descrita como aquela que chega pequena e começa a matar as outras ao lado, ganhando tamanho, garbo e força. Todos parecem gostar dela, exceto um animal, um cachorro que vive por ali e vive latindo para a árvore. 

No fim, podemos dizer que O Cão e os Caluandas (Caluandas é como são conhecidos aqueles que são de Angola) é a obra de um país em construção em sua diversidade, em suas distinções absolutas, procurando alguma coerência que transforme aquela população em povo de uma nação. Contrastes, contradições históricas, burocracias, vícios, mas também esperanças, sonhos e utopias são retratadas por Pepetela com humor e graça, mas também com força e ironia. 

Um belo retrato de que, mais do que independentes e livres, um país, qualquer país, levará séculos para desfazer os efeitos nefastos de uma colonização. A esperança? A errância de pensamento e a potência de um povo em devir. Afinal, “a verdade é como um diamante, reflete a luz do Sol de mil maneiras, depende da faceta virada para nós”

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