Uma odisseia intimista. Um relato de sororidade feminina. Uma jornada através das violências do patriarcado. O desfazimento do mito do amor romântico. Assim poderíamos resumir o romance “Volúpia”, de Raquel Marinho, publicado em 2023, obra que nos arremessa diante de uma vida, mas cuja história traz o relato silencioso de muitas outras mulheres que não puderam jamais relatar suas experiências.
Volúpia conta a história de Giovanna desde os primeiros anos da juventude até os últimos momentos de sua vida adulta. O romance se passa nas décadas de 40 e 50 em Pernambuco, sendo a maior parte deles na cidade do Recife. Ao lado de sua “irmã de alma” ou mãe de espírito, como elas costumavam se reconhecer, Giovanna vive uma verdadeira via crucis, tendo sido vendida por seu pai para um marido mais velho com quem passa por um romance de luxúrias sexuais e violências constantes. Ali, ao confundir abusos com prazer, Giovanna vai até o fundo do poço pelas constantes violações sexuais sofridas até cair em si e ser salva por essa sua companheira, Nicinha.
Este momento, inclusive, nos chega quase como uma ópera em que Raquel apresenta a via crucis de Giovanna através dos rituais de sexo e violência cometidos por seu marido. A cada noite uma música clássica era colocada na vitrola para que toda vizinhança pudesse ouvir o que se passava na Casa Grande, em trechos que me lembraram muito uma das cenas mais brutais de Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick. Nesses momentos, ouvimos de Ave verum corpus, passando por A Flauta Mágica e a Lacrimosa de Mozart, até chegar em outros compositores como Chopin, Beethoven, entre outros outros, dando a ver uma relação direta e contrastante entre música clássica, belíssima, e a violência arcaica das tradições.
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Ao contrário de Giovanna, Nicinha é uma mulher negra vinda das camadas populares, mas que vivendo na casa dos Porto Cavalcante, família de Giovanna, recebe a mesma educação que os demais filhos e vai, durante a vida, tomando consciência não só de sua condição de mulher, principalmente ao acompanhar a vida de Gio, mas também dos atravessamentos de classe e raça que recaem sobre si própria. Logo no começo do livro, ela já nos aponta para aquilo que a gente vai descobrindo no decorrer da obra:
“Não acredite em facilidades. A vida nunca é fácil. (…) Cuidado com a empatia! A identificação com as violências do mundo pode revelar a naturalização e aceitação das mazelas morais na sociedade em que vivemos.”
A chave do romance, no entanto, não está apenas nesses relatos, mas principalmente na estruturação da escrita composta por Raquel: a história de Giovanna nos é narrada através do ponto de vista de Nicinha que, aos 96 anos de idade, relata a história para Sabrina, neta de Giovana e filha de Saulo.
É interessante notar algumas características de Volúpia que aparecem e reaparecem na escrita de Raquel Marinho: por um lado, esta narrativa contada por uma terceira pessoa que, no entanto, é uma narradora onisciente, a quem toda história lhe foi apresentada. De outro, essa mesma narradora não é quem vive as ações, mas sim que as testemunha. Dessa forma, cabe a ela não só relatar a vida de Giovanna, mas dar a ela um sentido, de modo que tudo que sua irmã havia passado não caia no esquecimento ou seja apreendido pelas palavras maldosas das pessoas as quais Gio passou pela vida. O que entra em jogo, então, é uma tentativa de retirar um véu da sociedade e revelar a verdade:
“Mentiras sempre são mentiras. Ficam guardadas em caixa sem nenhuma espécie de lacre, não há correntes, cadeados ou senhas. Quando a verdade quer vir à tona a mentira se descostura, como uma linha ruim que se desfaz na primeira lavagem da roupa, às vezes se abre apenas um forro, outras vezes se abre a roupa inteira expondo quem veste. A verdade é nua, não tem máscaras e nem roupas.”
Tal como em Hamlet, de William Shakespeare, que transmite a Horácio responsabilidade de narrar o desmascaramento de seu tio que usurpou o poder do reino da Dinamarca após entender que “o resto é silêncio”, Nicinha é aquela que, ao contar para Sabrina essa história, busca escapar do silenciamento. A mulher conta através de saltos temporais como uma espécie de Ombudsman, a quem cabe não apenas relatar, mas produzir reflexões filosóficas, éticas e políticas sobre o que viveu Gio.
Por fim, temos na figura de Sabrina justamente aquela a quem cabe romper o ciclo de abusos, opressões e violências. Sabrina encara com inconformismo as histórias relatadas e vai tomando consciência de que sua vida chegou até ali justamente através daquelas que sobreviveram a tudo, a todos, à história e à memória, aos socos e pontapés, aos cárceres privados e aos estupros.
Entretanto, aqui está um ponto importante de Volúpia: Raquel também sabe que não pode consertar magicamente a história de suas personagens. Giovanna passa por pelo menos 7 gravidezes e, mesmo diante das mais brutas violações não cogita o aborto, afinal, aquele não era um tema ainda tão claro como direito das mulheres naquela época. Nem tampouco havia ainda a revolução da pílula anticoncepcional, o que de certa forma impediria uma contracepção responsável cuja culpa, no fim das contas, recai sempre sobre os corpos das mulheres. A maternidade, inclusive, é vista com bastante complexidade e ambivalência:
“A maternidade não é essa ternura tão amplamente romantizada ou como culturalmente querem parecer que seja, propagando-a fantasiosa. A gestação em via de regra dói. O parto, dói. O pós parto, dói. Amamentar, dói. Ver o filho chorando, dói. Não dormir direito, dói. Servir a todos e ser a última, dói. Não ter hora pro banho, dói. Ter um dia cansativo e não poder descansar, dói. Andar com as unhas e os cabelos a fazer, dói. Arrumar todos e sair bagunçada, dói. Não ter tempo pra si, dói. Mãe precisa de ajuda e não de críticas, de carinho e não de porradas. Quem cuida de todos, precisa de cuidados também. A maternidade não é fácil, a realidade é difícil.”
Ao contrário do que é relatado na orelha do livro, considero sim Volúpia imerso das perspectivas feministas, inclusive quando Raquel cita e esmiúça um dos principais conceitos de Simone de Beauvoir, a ideia de que “não se nasce mulher, torna-se mulher”:
“a biologia feminina não é óbvia, deveria ser, mas não é, trata-se de um fragmento que compõe um elaborado molde para costurar a sofisticada roupa da composição cultural de uma identidade feminina. Esse tema é tão torturante quanto uma roupa que fratura costelas e perfura pulmões tal qual os antigos espartilhos.”
Raquel também não abre mão da verossimilhança para contar sua história. Todas as personagens são revolucionárias a seu modo, porém todas são produtos de seu próprio tempo. Assim, fica evidente que o comprometimento maior da autora está em narrar tudo tal como a época lhe permitiria, diante dos limites das liberdades, ainda que rompendo com padrões daquela sociedade. Um exemplo interessante e marcante é a emancipação da personagem principal por conta da entrada no mercado de trabalho que lhe permitiu não só a independência financeira, mas também prover o sustento de Nicinha que, enquanto isso, cuidava da casa e de Sara.
A principal lição de Volúpia – se é que a literatura precisa de lições – é a importância de se fazer histórias para serem contadas. A importância da memória como um elemento essencial para o silenciamento. A história pessoal de cada personagem como força para transformação não só das próximas gerações de personagens, mas da nossa aqui fora. A tomada de consciência não é um elemento apenas filosófico ou ideológico, é também algo que se dá através das experiências – suas e de outros – por isso a ampliação de repertório de narrativas feitas por mulheres só podem resultar em coisas boas para nosso mundo.
Giovanna é a personagem que luta até o fim, mas sucumbe. Nicinha é aquela que toma para si a responsabilidade de narrar essa vida. Sabrina é a primeira a romper com aquele ciclo. E nós leitores devemos estar para além dessas figuras: absolutamente intolerantes com a intolerância e responsáveis pela transformação diária. O mundo não está aí. Ele está aqui e cobra da gente todos os dias.
Volúpia é um livro que desperta sim desejos, mas desejos de transformar. Dormir um e acordar outro e, como Giovanna, entender que toda violência está justamente no ponto em que o amor falhou.
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