Correu o mundo semana passada a notícia de que foi descoberto um monumento misterioso datado de quatro mil anos atrás numa área destinada à construção de um novo aeroporto na Grécia. Mas não precisamos ficar com inveja: nosso aeroporto de Guarulhos – o maior aeroporto não só do Brasil, mas de toda a América Latina – tem também suas próprias histórias. Guarulhos foi construído numa área que já foi território de povos originários. Por lá passaram 41,3 milhões de pessoas ano passado, e 35 mil funcionários trabalham todos os dias para que as chegadas e partidas sejam bem-sucedidas. Assim como os passageiros, estes funcionários também são atravessados por encontros fugazes. E é sobre estes encontros que versa o filme “O Estranho”.
Alê (Larissa Siqueira) é uma das funcionárias do aeroporto, e se lembra de quando o terreno ainda não abrigava as aeronaves num eterno decola-e-pousa. O Aeroporto Internacional de Guarulhos foi inaugurado em 1985, logo uma conversa dela com Antônia (Antonia Franco) nos conta. Quando não está trabalhando colocando malas nas esteiras, Alê conversa com os colegas de trabalho, passeia pelo free shop e rememora a época em que o local ainda não era um aeroporto.
Alê é fascinada por flores secas – aquelas que costumávamos, hábito praticamente em desuso, pressionar contra as páginas de livros – e coleciona artefatos indígenas. A terra de que ela tira estes artefatos está em constante metamorfose, assim como todas as pessoas que encontra. A irmã de Alê, Isa, foi embora há 30 anos, aos dezessete. Alê escreve em um caderno sobre a ausência, poeticamente. É com poesia também que ela fala sobre o rio que corta a cidade, o Baquirivu, que em Guarulhos deságua no Tietê e que, desde 2021, vem sendo canalizado numa obra para contenção de enchentes.
Alê é uma mulher lésbica cuja amada, Silvia (Patricia Saravy), está para se mudar de Guarulhos porque não tem trabalho como depiladora num salão de beleza. Atrás de um beijo das duas, um avião passa a toda velocidade, pronto para decolar, metáfora para uma relação que, por sua vez, não tem como decolar. Esta relação por si só já dá ao filme o título de queer, mas é pouco desenvolvida.
Num determinado momento, Alê fala sobre os sambaquis, amontoados de conchas que marcavam o lugar de túmulos na pré-história. Os sambaquis são de cerca de 6500 anos atrás e podem ser encontrados no litoral brasileiro e ao longo de margens de rios diversos. O mais antigo sambaqui data de mais de nove mil anos atrás e foi encontrado no Vale do Ribeira, em São Paulo – 250 quilômetros distante de Guarulhos.
Na segunda metade, o filme ganha ares de documentário com depoimentos de mulheres indígenas que vivem numa reserva paulista. Alê também é entrevistada por jovens que querem saber acerca da vida na área antes da construção do aeroporto. Sobre a reserva, nossa mente colonizada costuma pensar que elas só existem no Xingu – porém há mais de 21 mil indígenas na grande São Paulo, vivendo em reservas ou na periferia da metrópole. Em Guarulhos há a Aldeia Filhos da Terra, que abriga cerca de 80 pessoas em condições difíceis de saneamento, habitação e educação. Muitos índios se aculturaram, em geral para não sofrer ataques preconceituosos, mas novas iniciativas de resgatar a cultura indígena vêm sendo feitas por lideranças, através, por exemplo, da Associação Arte Nativa Indígena.
“O Estranho” é o segundo longa-metragem de ambos os diretores, Flora Dias e Juruna Mallon, sendo o primeiro da dupla “O sol nos meus olhos”, de 2012. Sobre esta nova empreitada, Mallon declara:
“Eu vejo “O Estranho” como um filme de encontros. Foram esses múltiplos encontros que, ao mesmo tempo, se tornaram a própria matéria prima do filme e que definiram a trajetória que o filme iria percorrer. Eles foram os pés e a terra dessa longa caminhada que o filme se propôs a fazer. Num primeiro momento, o encontro se deu com o território de Guarulhos, os trabalhadores do aeroporto, os estudantes e habitantes dos seus bairros. Em seguida, ele se traduziu nas parcerias com equipe e personagens que foram brotando e nos ajudando a lidar cinematograficamente com aquela rica e complexa realidade.”
Assim como acontece com os passageiros, com os personagens há encontros e desencontros, interações que duram apenas alguns minutos e outras mais duradouras. Apesar de nunca sair do solo, é um filme que vai te deixar com vontade de viajar – ou ao menos de descobrir novas culturas, que podem estar mais próximas do que imaginamos.