“Aproximações do Sono”, Raul Colaço: uma defesa contra um mundo caótico e degradado

Existe uma pequena fresta, uma pequena partícula da vida em que as coisas acontecem por fora do nosso controle. É uma pequena brecha nos sentidos que se dá, talvez, entre o tempo e o espaço. Há quem diga, inclusive, que na própria noite existe um pequeno lapso de tempo entre a madrugada e a manhã em que coisas inesperadas acontecem, tal como ensaia Strindberg em Senhorita Julia. A própria música popular brasileira já registrou isso com Herbert Vianna ao mapear que existe “o segundo que antecede o beijo”. Perceber essas partículas do tempo que nos roubam a razão e nos lançam em uma espécie de destino impossível ou de um acaso é a tarefa de Raul Colaço em Aproximações do Sono, livro de contos publicado recentemente pela Editora 7Letras.

Em Aproximações do Sono, Raul Colaço divide os 15 contos do livro em duas partes, o “Sono não-REM” e o “Sono-REM”, para tentar dar conta de duas fases dessas quase inconsciências. Cabe pensar um pouco a obra através dessa divisão pelo “REM”, termo que designa “Rapid Eyes Movement”, o momento do sono em que nossos olhos se movimentam rapidamente por trás das pálpebras, denotando a fase mais profunda do nosso sono. Em um primeiro momento, Colaço parece se ater a algumas narrativas ainda em gestação, em histórias que se formam e se configuram enquanto são escritas ou, até, contos que se formam como partículas, pequenos blocos de texto cujo significado está ali dado e se desfaria tanto ao acordar quanto no REM. A fresta, assim, seria desfeita. Em um dos contos, meu preferido, por sinal, Colaço inverte o movimento e violenta a realidade de uma jovem com a narrativa do sonho, mas, veja bem, através de um pesadelo que se vive no mundo real. Chama-se “Quem não pode dormir acha a cama malfeita”:

Alô, pai. Bom dia.
Bom dia, minha filha. Dormiu bem?
Não. Hoje eu tive um pesadelo terrível. Sonhei que estava sendo estuprada.
Sempre achei que você dorme muito à vontade. Cansei de avisar. Mas o que pai diz não se escreve. Sem calcinha e peito fora da camisola. Homem não se controla.

O terror do humor que o conto apresenta busca um jogo próprio do insólito que é fazer uso do insólito como materialidade do real. Uma vez traçado como materialidade, então, ele se torna terrível. Este procedimento é muito caro a escritores associados à literatura fantástica, a exemplo do argentino Adolfo Bioy Casares e do brasileiro Murilo Rubião, mas também se anuncia em outros autores, em menor ou maior grau, como Ernesto Sábato e Osman Lins.

No caso dos contos da primeira parte, Colaço faz uso de uma linguagem que se busca mais sintética e, se é verdade que o conto é uma arte centrípeta, ou seja, em que tudo conflui para o seu centro, o autor chega ou se aproxima bastante deste procedimento mínimo, o pouco que tudo diz.

Leia também: “Aproximações do Sono”: Raul Colaço retrata em contos os pesadelos que habitam a vigília

Outra curiosidade interessante de Aproximações do sono é o autor fazer uso de frases de “domínio público”, ou seja, frases de efeito, de sabedoria popular, provérbios, para jogar com o imaginário do leitor. E, ainda que nem sempre sejam frases realmente conhecidas, elas emulam realidades, por isso o jogo fica ainda mais vivo. Outras vezes, o que surge são histórias do imaginário popular que assombraram e assombram gerações. “Quem não pode dormir acha a cama malfeita”, conto citado acima, é um desses casos, assim como a imagem grega da cobra Ouroboros, aquela que come o próprio rabo, ou ainda a menção ao rei egípcio Psamético.

Porém, e isso é o mais interessante, as menções a figuras conhecidas ou as frases de efeito não estão ali para cumprir sua função esperada, que é a de dar referência ou de referendar um real. Ao que parece, Raul Colaço joga com elas na fresta mínima novamente: de um lado, ele aciona o nosso imaginário, o que nos leva a algumas conjecturas. De outro, ele anula esses sentidos através do terror, do horror ou do insólito, como se estivéssemos diante de um provérbio que não emite nenhuma sabedoria, apenas nos deixa o vazio da palavra dita e sem saída.

Um ponto ainda a trazer são as múltiplas referências de Aproximações do Sono, as quais vão de Mallarmé, que dá título a um conto com seu lance de dados, a Mumuzinho, cuja epígrafe abre, recoloca e rearma o conto “Tiro no escuro”, que narra a história de um desgraçado chamado Francisco que já nasce diante de uma promessa absurda. O conto, daqueles que misturam tragédias e oráculos, tem uma das frases mais bonitas de todo livro:

Ele pouco pôde provar da fruta da infância, estragada pela lagarta insaciável da pobreza.

Estamos já agora na segunda parte do livro, “Sono-REM”, em que os contos parecem ganhar um pouco mais de robustez. Não tanto na questão temática que nos mantém na fresta entre o real e o insólito, entre o óbvio e o terror, porém agora é possível perceber um investimento no conto como forma um pouco mais alongada. É interessante porque, embora se possa ver a influência nos seus contos de Jorge Luis Borges – que costumam ser mais longos -, há também um jogo em Aproximações do Sono com a brevidade do Machado de Assis dos romances, não dos contos. Tudo isso, parece, atravessado por uma leitura mais “pós-moderna” de uma figura ímpar como Silvina Ocampo.

Enquanto isso, os contos passam nos trazendo histórias de uma ida à praia com um Elefante, uma Narizinho e um Samaritano. Ou então de um Heitor Ambrósio – um artefato literário – que faz de tudo, mas é sempre impedido de se matar. É dele uma das passagens mais marcantes do livro:

Diante das negativas circunstâncias, Heitor Ambrósio achou, por um momento, que estava protagonizando um conto fantástico. Contudo, logo em seguida, descobriu uma metáfora mais relevante. Sentia-se como alguém em estado vegetativo: sem poder mexer um músculo sequer de forma voluntária, apenas concentrando-se em contemplar os outros a decidirem sua vida, debaixo de seu cavanhaque, sem qualquer consulta ao principal interessado.

E, se é verdade, como diz o autor, que Aproximações do sono surgiu “do obsessivo desejo de encontrar o limite entre a vigília e o sono”, tarefa também presente em seu primeiro livro, “Rúmino-ressonância”, estamos diante de uma obra de contos que, apesar de curta, ensaia uma longitude que vai além da própria forma, buscando nas frestas do que as palavras permitem não exatamente uma desconstrução, mas um esfacelamento de figuras, ações e verdades estáveis. Aproximações do sono é um ataque a um mundo insistentemente cruel, mas também um gesto de defesa, nas palavras do escritor, contra este “mundo caótico e degradado”.

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