“Cartas para o Edil”: A contracultura nunca foi tão gentil quanto com Luís Capucho

Há quem diga que o tempo de se mandar cartas já passou. Há quem diga que o mundo é necessariamente veloz e que tudo corre pra frente, o tempo todo, e assim será infinitamente. Porém, existem algumas pessoas que mostram que o mundo é mesmo uma invenção. Que dele, o que se estrai é o que nosso olho escolhe ver, ou melhor, o que nosso olho treina ver porque a imaginação é uma forma de treino dos sentidos. Cartas para o Edil pode ser usado nos tribunais para provar esse ponto.

Luis Capucho, que de tanto ouvir, ler, elogiar e conversar já considero amigo, em Cartas para o Edil, me mostrou mais uma vez que arte é jeito de ver. O livro é uma reunião de cartas que ele enviou para um amigo durante três décadas, decada de 80, 90 e finalizando nos anos 2000. Poucas e curtas, elas mostram parte da vida adulta jovem e adulta adulta de Luis tanto em Niterói, mas principalmente Papucaia, cidade pequena nos arredores da grande Niterói.

Luís Capucho, músico, poeta e cantor

“Ontem me arrumei, me perfumei, fui para o ponto de ônibus.”

Em determinado momento, Capucho diz que deve ser um delicado porque as histórias vão passando por ele e ele fica de espectador, em outro, ele disserta sobre a graciosidade das vacas, mais a frente tenta descrever a beleza de um homem, mas vê as palavras escaparem. Narrando a vida de gay e pobre, numa cidade pequena, Capucho constrói a imagem mesmo de um sujeito delicado, espectador do mundo, mas não por ser gay, mas por insistir em ser doce em um mundo tão duro, de pessoas tão certas e assertivas. Por ter uma espécie de vício do olho gentil, de quem entende as razões das pessoas serem como são, dos seres serem como são, de tudo ser como é.

Leia também: Diário da Piscina: A literatura brasileira de Luís Capucho

Em um trecho, meu preferido, ele conta de um encontro com um amigo em que foram para uma casa por detrás de um botequim e ficaram por lá tomando cerveja. Diz que acabaram todos vendo televisão, ele e mais quatro pessoas, dentre eles “dois bofes e duas bichinhas”. E que o assunto era esse, que tipo de gay cada um ali era. Capucho via tudo meio de fora, como se o mundo se movesse e ele fosse esse espectador. E assim foi quando foi classificado como um “entendido”, aquele que é bicha pro bofe e bofe pra bicha. Um ponto de incerteza.

E a gente vai passando as Cartas tendo a sorte de poder ler o que o Edil leu e pensando se poderemos um dia ser também um Edil de Capucho, alguém que pode ouvir e receber suas palavras, alguém que pode escutar a arte enquanto ela está sendo vivida, antes de ser feita. Eu já disse a ele, mas digo aqui: Luis Capucho é o meu artista vivo favorito, da literatura e músicas potentes que provavelmente só o amanhã cai reconhecer. Não se depender do Edil. E de mim.

Conheça o site de Luís Capucho aqui!

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