A biografia de José Saramago, de João Marques Lopes: entre as polêmicas e o correr da vida

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“Que todas as ações da Fundação José Saramago sejam orientadas à luz desse documento (Declaração dos Direitos Humanos) que, embora longe da perfeição é, ainda assim, para quem se decidir a aplicá-lo nas diversas práticas e necessidades da vida, como uma bússola a qual, mesmo não sabendo traçar o caminho, sempre aponta para o Norte. (…) Como se vê, não vos peço muito, peço-vos tudo.”

José Saramago

Foi com esse texto que o Saramago inaugurou a sua Fundação José Saramago que promove diversas ações em defesa e promoção das artes e da literatura, e é com ele que eu escolhi abrir meu comentário sobre a sua biografia, escrita por João Marques Lopes.

O Saramago é daquelas figuras únicas que aparecem poucas vezes aqui nesse mundo, mas tem um papel essencial de criar de novas ideias e pensamentos, sepultando ideias antigas e colocando em xeque algumas visões do nosso presente em busca de um mundo que, se a gente não pode fazer melhor, pode pelo menos descobrir a bússola que aponta o caminho pras transformações que tanto precisamos.

A primeira biografia do autor, chamada só de “Saramago”, foi lançada em 2009 por João Marques Lopes, que é um estudioso da literatura portuguesa e brasileira. Ele fez um primeiro grande esforço biográfico e intelectual de tentar dar conta da vida de um dos maiores escritores ibéricos de todos os tempos e único na nossa língua portuguesa a atingir uma popularidade de venda e valor literário que o levou diretamente ao Prêmio Nobel de Literatura, recebido em 1998.

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O livro conta, um pouco de forma apressada, as principais passagens da vida do Saramago: seu nascimento em condições de vida bastante precárias em Azinhaga, onde os avós analfabetos criavam porcos; depois sua ida para a cidade grande quando começou a estudar, entrar em contato com os livros e se fascinar pelas bibliotecas, mesmo porque não tinha dinheiro para comprar livros; e por fim, como esse caminho meio tortuoso levou o rapaz de torneiro mecânico a jornalista, começando assim os seus primeiros escritos.

Os primeiros versos conhecidos do escritor estão no livro. João Marques conta que esses versos foram escritos em um prato de louça que ele deu a uma pretendente a namorada. Os versos são:

Cautela, que ninguém ouça.
O segredo que te digo:
Dou-te um coração de louça
Porque o meu anda contigo.

Foi assim que se formou o caminho do Saramago poeta e político: pelos caminhos tortuosos de um homem autodidata, que aprendia por si e pensava por si. Esse é um dos pontos principais que a gente pode destacar nessa biografia: pensar a figura de José Saramago não pelo viés de homem de esquerda culto alinhado ao Partido Comunista Português e ao marxismo, mas como homem de esquerda que viu e viveu e achou justo pensar e tentar mudar a sociedade em que viveu.

A biografia não deixa de mencionar também as perseguições do estado português e da igreja católica quando censuraram o livro Evangelho Segundo Jesus Cristo dizendo que“ofendia a comunidade católica e a tradição portuguesa.” O autor logo se defendeu dizendo que não tinha nada a ver com a comunidade católica, optando por um autoexílio na ilha de Lanzarotte com a esposa Pilar del Rio.

Creio que a biografia serve apenas como ponto de partida para iniciação na vida e obra de Saramago, mas que de certa forma, não faz jus à grandeza do autor. O caráter apressado da escrita com muitos fatos retirados de jornais e livros que o próprio autor escreveu, dá uma visão um tanto quanto viciada e redundante de Saramago, repetindo diversas vezes o caráter “polêmico” sem levar em conta que a polêmica quem cria são os ofendidos e não o pensador que só o que fez foi pensar.

José Saramago ainda merece uma biografia de mais cuidado, de mais poesia e de mais paixão, o que de maneira alguma desqualifica o trabalho de João Marques Lopes que, visivelmente apaixonado pelo autor português, faz de sua paixão um forte impulso de criação. O que não se pode perder de vista, quando se fala de Saramago, é a imensa paixão crua pelo mundo, apontando caminhos de uma grande esperança de mudança misturada com um desencantamento pela sociedade dos homens maus. A esquerda, para ele, não é um projeto de governo, mas um sentimento de justiça de um dos homens que mais amou viver e que não cansava de repetir que o mal da morte é “já não estar”. Saramago não sabe que, sem estar, sempre estará.

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