Como uma série de TV desencadeou a queda da civilização ocidental

Eu quero discutir sobre uma série bastante popular que eu e minha namorada assistimos sempre na Netflix. É a história de um cara de família, rapaz bom, intelectual, que aos poucos vai se acabando e ficando louco e desesperado, levado pelo seu próprio egoísmo. Com um acidente depois do outro, ele se torna um monstro. Eu estou falando de Friends e seu herói trágico Ross Geller.

Você pode ver isso como uma comédia, mas devo dizer que não consigo rir contigo. Para mim, Friends mostra uma pesadíssima adoração  ao anti-intelectualismo, uma ode à burrice, o qual um homem talentoso e inteligente é “perseguido” pelos seus amigos idiotas. A constante enxurrada de risos na plateia “ao vivo” nos lembra que nossas próprias reações são desnecessárias, redundantes…

A música tema em si (que todos amam), tem um monte de mensagens pressageiras, nos dizendo que a vida é enganadora, as carreiras são medíocres, a pobreza está logo na esquina e a vida amorosa é um D.O.Auma sigla que você já deve ter se perguntado, e significa “Dead On Arrival”, termo médico para indicar quando alguém morre na chegada ao hospital. Mas, não se preocupe, você sempre terá a companhia de idiotas. Eles estarão lá pra você – I’ll be there for yoooou…

Não é para se sentir bem?

Talvez seja melhor dissecar e explicar isso para os que não são familiarizados com a série. Se você se lembra dos anos 90 e início dos anos 2000, e teve chance de ter ou chegar perto de uma TV a cabo, então você se lembra de Friends. A série passava na Sony, chegou a passar em canais abertos em 2002 como Rede TV! e depois no SBT, e lá fora, nos EUA, passava em horário nobre das noites de quinta. Era o mais simpático grupo que um agente de elenco já montou: todos jovens, todos de classe média, todos brancos, todos lisos, todos atraentes (mas acessíveis), todos moralmente e politicamente sem graça, e todos equipados com personas de fácil digestão. Joey é o bobão. Chandler é o sarcástico. Monica é obsessivo-compulsiva. Phoebe é a hippie. Rachel eu não sei bem… Rachel é a que gosta de fazer compras. Então havia Ross. Ross era o intelectual e o romântico.

Eventualmente, grande parte do público de Friends – o incrível número de aproximadamente 52,5 milhões de pessoas – se afeiçoaram a Ross. Mas os outros personagens da série se colocavam contra ele desde o começo, de maneira sutil. Veja o primeiro episódio, quando Joey fala do Ross: “Esse cara diz ‘oi’, e eu quero me matar”. Na verdade, toda vez que Ross dizia qualquer coisa – fosse sobre seus interesses , seus estudos, suas ideias, fosse qualquer coisa – sempre que ele estava no meio de uma frase, algum “amigo” reclamava e dizia o quão entediante Ross era, como era estúpido ser inteligente e que ninguém se importava. Seguia-se a risada da plateia fantasma. Essa piada continuou, praticamente, por todos os episódios, por dez (10) temporadas. Você pode culpar Ross por enlouquecer?

E como uma tragédia grega, nosso herói é pego numa profecia que não pode ser evitada. Os produtores do programa, parecidos com a ordem imutável dos deuses, decidiram que Ross devia ficar com Rachel, aquela que compra. Honestamente, acho que ele poderia ter conseguido melhor, apesar de sua moral questionável hoje em dia.

Por que tanta simpatia por Ross?

O show terminou em 2004. O mesmo ano em que o Facebook foi lançado; o ano em que George W. Bush foi reeleito; o ano em que a televisão tornou-se uma força dominante na cultura pop, com o American Idol iniciando um reinado de oito anos de terror sendo o show número 1 nos EUA; o ano em que Paris Hilton começou sua própria “marca de estilo de vida” e lançou uma autobiografia. E Joey Tribbiani teve um programa spin-off. O ano de 2004 foi quando desistimos completamente e abraçamos a estupidez como algo de valor. Basta perguntar ao Green Day; seu álbum American Idiot foi lançado em 2004 e ganhou o Grammy de Melhor Álbum de Rock.

Sim, minha teoria é que Friends pode ter desencadeado a queda da civilização ocidental, mesmo com todo o sensacionalismo que isso tenha. Você pode pensar que eu sou louco. Mas, citando Ross: “Ah, eu sou? Eu sou? Tô ficando louco, é? Tô perdendo meus sentidos?” (“Oh, am I? Am I? Am I out of my mind? Am I losing my senses?”). Você sabia que a música que originalmente tinha no episódio piloto de Friends era It’s the End of the World as We Know It (And I Feel Fine), do R.E.M.? Uma música feliz com uma mensagem apocalíptica que é ignorada, em grande parte. Quase a que temos agora.

Eu fui professor em 2004. Eu organizei um clube de xadrez na escola, e vi como meus alunos eram perseguidos, sofriam bullying. Eu tentei o meu melhor para defendê-los, mas eu não poderia estar em todo lugar. Meus alunos eram inteligentes, nerds enormes e estavam em território hostil quase sempre. Outros estudantes esperavam do lado de fora da sala para emboscar os membros do clube de xadrez, que se encontravam lá todos os dias depois do almoço. Durante meu período como professor, ganhei a reputação de ser um matador de valentões e defensor de nerds. Eu te garanto: valentões podem ser malvados, mas eles sabiam que eu era muito pior.

Talvez os “intelectuais” sempre tenham sido perseguidos e empurrados nos armários daquele jeito bem clichê americano, mas algo no meu íntimo me diz que estamos num ponto baixo – onde a interação nas mídias sociais substituiu o debate genuíno e o discurso político, onde o senso científico é rejeitado, onde a pesquisa científica é subfinanciada, onde o jornalismo está se afogando em fofocas de celebridades, porque é isso que o povo quer, é isso que dá dinheiro.

Talvez seja tudo uma diversão inofensiva. Como o riso alegre da audiência fantasma? Pode ser. Mas estou sinceramente preocupado por não termos feito o suficiente para cultivar a curiosidade intelectual dentro de nossa cultura.

Felizmente, há um movimento de resistência. Pessoas com coragem, que não têm medo de começar uma frase com “Você sabia que…” Estes são os Ross do mundo, mesmo que ele seja um representante fraco. Eu os reconheço do meu clube de xadrez. E eu os vejo em minha cidade, escondidos no museu de arte, agachados em sebos, trocando olhares de esguelha nas bibliotecas públicas e cafés, espreitando nas escolas, faculdades comunitárias e universidades.

Não havia esperança para Ross. Ele enlouqueceu, e sim, ele ficou chato.

Então, como mantemos nossa sanidade em um mundo burro pra caramba? Eu não seria um bom professor se não viesse preparado com algumas ideias.

No. 1: Leia um livro.

Algo especial acontece quando você deixa de lado as distrações da cultura moderna e mergulha num romance. Você se abre para novas ideias, novas experiências, novas perspectivas. É um experimento de paciência e atenção plena. A New School for Social Research, em Nova York, provou que a literatura melhora a empatia. É verdade. A leitura faz de você menos um idiota. Então, leia com frequência. Leia livros difíceis. Leia livros controversos. Leia um livro infantil. Leia um livro que faz você chorar. Leia algo divertido. Mas leia.

No. 2: Aprenda alguma coisa.

Seu cérebro é capaz de muita coisa. Alimente-o. Aprenda algo novo. A maior ameaça ao progresso é a crença de que algo é complexo demais para ser aprendido. A pobreza aí é permanente. O racismo sempre existirá. O conflito israelo-palestino é muito difícil de entender. O sistema de educação pública está uma merda. Eduque-se, para que você possa fazer parte da conversa. Aprenda algo científico, algo matemático. Explore a filosofia. Estude paleontologia. Tente aprender um novo idioma. Você nem precisa ser fluente, basta ter mais algumas palavras na sua cabeça. Ouça um podcast educacional. Veja documentários. Professores de faculdades, como Harvard, Yale, Columbia, Stanford, estão oferecendo palestras online gratuitamente. Pense no que você poderia e quer aprender. Um dos meus maiores desafios como professor foi convencer os alunos de que eles eram espertos depois que alguém lhes dissesse que eram burros.

No. 3: Pare de comprar tanta besteira.

Isso pode parecer um non sequitur, algo sem sentido, mas acredito que a cultura de consumo e a cultura do idiota estão intimamente ligadas. Simplifique sua vida. A idiotice domina nossa paisagem cultural porque vende mais tênis Nike e Big Macs do que qualquer outra coisa. Quando consideramos cuidadosamente o que trazemos para nossa casa, é menos provável que sejamos manipulados por impulsos.

E finalmente: Proteja o sabichões.

Um programador de computadores lá em Seattle tá fazendo mais para acabar com a pobreza, a fome e as doenças do mundo através da Fundação Bill e Melinda Gates do que qualquer outra pessoa na América atualmente. Nerds criam vacinas. Pontes e estradas também. Nerds se tornam professores e bibliotecários. Precisamos dessas pessoas detestáveis, porque elas fazem do mundo um lugar melhor. Nós não podemos tê-los encolhidos diante de uma sociedade que revira os olhos a cada palavra que eles dizem. Ross precisa de melhores amigos.

Fonte: David Hopkins

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