Crítica | A esposa: a invisibilidade da mulher escritora e os “gênios” medíocres

A proximidade do enredo de A esposa com a história de diversas mulheres no mundo é a tensão permanente do filme indicado ao Oscar 2019. Mulheres que sacrificam sonhos porque precisam doar-se por completo em casa, sem encontrar espaço para projetos pessoais. Das mais simples atividades, tempo de privacidade para a saúde mental, até estudar e trabalhar, mulheres encontram empecilhos até mesmo para simplesmente existirem sem a ameaça de uma reação violenta do companheiro. Mulheres que, como a personagem de Glenn Close, alimentam famílias, cultivam a casa, concedem sacrifícios diários e, ao fim, são quem criam reis.

O filme A esposa traz a difícil revelação de que, por muitos séculos, pode ter havido e ainda podem existir homens que ganham os louros por uma autoria duvidosa, enquanto mulheres encontram um cenário difícil para construir uma carreira de renome. E a situação piora se isso ocorre ainda no epicentro de um casamento. Assistir ao filme A esposa, enquanto mulher e escritora, é sentir o medo de ter suas ideias caladas por uma relação desigual.

Glenn Close e Jonathan Pryce são, respectivamente, Joan e Joe Castleman. Quando jovem, Joan foi aluna de Joe e assim os dois se apaixonaram por entre as conversas de literatura. Décadas depois, o casamento prevaleceu e o marido agora é um grande escritor prestes a receber um Prêmio Nobel de Literatura. Enquanto a face dourada do prêmio se revela e a fragilidade de um simples humano tomado como divindade pela maior honra concedida a um literato, vemos se despir aos poucos as camadas desse personagem masculino. Jonathan Pryce faz de Joe uma figura crível, do homem que usa do humor e das referências intelectuais para conquistar mulheres, de um homem que já não tem os mesmos encantos da juventude. E há esse casamento que, por vezes, o espectador não sabe afirmar se são sentimentos verdadeiros ou tão moldados por décadas a ponto de soarem quase perfeitos.

Joan é a esposa que controla os remédios, a comida, que avisa se tem migalhas de pão na barba do marido. Acompanha-o para receber o prêmio e logo passa a sentir como se esta versão atual dela estivesse deslocada dos sonhos passados. Logo o marido se torna um desconhecido e revelações acontecem para a protagonista, que é dada por Joe como apenas “a esposa”.

A atriz Claire Foy, intérprete da rainha Elizabeth II em The Crown e Janet Armstrong em O Primeiro Homem (First Man), disse ao receber o prêmio See Her no Critics Choice Awards 2019 que a imprensa afirmava frequentemente o fato de ela interpretar apenas a esposa de Neil Armstrong. “Não há algo como ser apenas a esposa de alguém”. Não é um cargo insignificante, nem invalida a particularidade dessa mulher. É com esta transformação de olhar que a personagem Joan perpassa sua vida, no filme, pensando em como todo este tempo dedicado a outra pessoa revelava desejos grandiosos os quais ela sentiu ser obrigada a anular em função deste título.

Pensando, então, no filme A esposa, a grande qualidade do filme é a dinâmica conflituosa entre Glenn Close e Jonathan Pryce. Ambos os atores constroem um cenário realista demais de diversos casamentos mundo afora, em que a dificuldade é compreender onde termina o carinho e se inicia a anulação da figura da esposa. Glenn Close é excelente neste papel por conceber uma personagem próxima a tantas mulheres.

Contudo, é preciso dizer que o roteiro não se esforça tanto para esconder a sua virada de trama. Quando ela ocorre, não surpreende por completo e ficamos aguardando para ver como o filme mostrará a construção de sua personagem. É por conta do talento de Glenn Close que Joan se destaca. Neste sentido, o roteiro não prioriza muito os diálogos que a obra literária adaptada de Meg Wolitzer tem, os quais são mais efusivos na denúncia ao machismo e teriam sido proveitosos para a construção de Joan. É este ponto que falta para tornar o filme mais eloquente e necessário. É claro que posicionar-se pode ser feito de forma sutil – e essa sutileza fica a cargo de Glenn Close. Porém, falta ao texto e direção facilitar esse desenvolvimento por transições que apresentem melhor as passagens entre os conflitos da protagonista. Pois o movimento do texto no filme é constante, precisando de uma valorização maior dos pontos mais altos para demarcar bem o arco de Joan.

Em razão do tema, A esposa é um filme relevante. Por séculos, tornou-se impossível às mulheres receber a genialidade como atributo. O ato criativo era apenas visto como qualidades para um bom matrimônio; a criatividade denunciava uma mente pensante e, portanto, perigosa. Assim, mulheres pensaram e criaram às escondidas. E, mesmo quando levavam seus trabalhos para os olhos do público, encontravam como muro inquebrável a reputação dos críticos majoritariamente masculinos.

Criou-se o segmento “literatura para mulheres”, visto como histórias menores, e negou-se que a autora mulher pudesse contar aquilo que pertencia ao imaginário dos grandes temas literários, desde guerras às histórias eróticas. Ao fim, o espaço da crítica, dominada por homens, é o qual denomina aquilo que merece ser visto. E, por muito tempo, estivemos cercadas apenas por nomes masculinos, com a falsa e a perniciosa impressão de que mulheres não fossem capazes de criar pesquisas, histórias, invenções. Felizmente, estamos testemunhando uma elucidação de inúmeros vácuos históricos. E é preciso que, ao fim, a autora se emancipe como um ser livre de ideias e faça parte, de fato, do mundo público.

O FINAL DO FILME (COM SPOILERS)

É necessário comentar brevemente o final do filme. Se você não quiser saber o que acontece, pule esta parte.

Ao final percebemos que Joan aceita preservar o nome do marido incólume e não revelar que era ela quem escrevia as obras e ele assinava. Houve comentários de que esse final não seria feminista, e creio que classificar o final apenas com esta expectativa seria equivocado. Se pensarmos Joan como uma pessoa real, a verdade é que se ela fosse à público revelar que era a verdadeira autora e vencedora do Nobel de Literatura, Joan nunca seria deixada em paz, ainda mais no contexto histórico em que o filme se situa. Sua fala seria posta em dúvida, diriam que está louca e teria uma vida sem descanso com tabloides afirmando ser condenável ela “manchar” a reputação de um morto. Diga-se de passagem, um morto com nome de peso.

O que seria possível fazer do ponto de vista ficcional? Que solução dar para esse enredo? Primeiro, o final poderia ter sido mais compreensível se o filme todo enunciasse alguns momentos bem pontuais em que Joan reflete sobre as propostas do biógrafo de seu marido. Uma personagem com quem Joan pudesse dividir essas dúvidas seria uma boa alternativa para entendermos de forma mais profunda os dilemas da protagonista. Esse dilema era fundamental de ser apontado: se Joan fosse à público, seu futuro como escritora acabaria. Era preciso o espectador ter isso enunciado principalmente pela autora. Porque mesmo que ela quisesse vir a escrever futuramente, tudo ainda seria visto à sombra do marido, ainda mais se Joan tivesse contado a verdade. É provável que ela tenha chegado a essa conclusão no intervalo entre a morte do marido e a cena final, em que ela abre o caderno e constatamos que ela pretende escrever. Mas o filme não demonstra essa passagem em nenhum momento.

Se o roteiro indicasse essa passagem, já seria o suficiente para amarrar bem a sua crítica: mesmo morto, aquele homem não deixaria o nome de Joan livre. Portanto, era mais sensato ela continuar escrevendo agora com seu próprio nome e só ser associada “positivamente” pela imprensa como “a esposa de Joe”, e não como a pessoa que o denunciou depois de morto.

Ainda assim, é um dilema massacrante, pois foi acima de tudo um cenário de um relacionamento abusivo que sempre precisa ser denunciado. Não houve necessariamente violência física, mas Joe usou a criação artística de sua esposa e a fez trabalhar em seu lugar, tratando-se de abuso psicológico. Talvez se hoje uma autora denunciasse que seu marido usou seus textos, haveria pesquisadores dispostos a comparar as obras e dar o mérito à escritora. Como já tem acontecido com pesquisas sobre autoras de outros séculos.

Ver essa perspectiva permite apontar como é de fato a realidade de uma mulher: se ela denuncia, sempre haverá quem a coloque em dúvida e a humilhe, relativizando o que diz. O final do filme não é condenável. Mas ele não dá muito espaço, se o pensarmos como ficção, para o espectador perceber como Joan entende esse luto abrupto e o que fazer com o seu passado. Era importante anunciar esse dilema no roteiro, visto pela própria protagonista, pois era o único passo que faltava para arrematar o arco. Assim, Joan revelaria seus dilemas podendo tomar uma decisão consciente de seu futuro, colaborando demais para engrandecer o tema do filme A esposa.

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