Homens imprudentemente poéticos conta a história de Saburo, Itato, Kame, Matsu e Fuyu, no Japão. O livro traz tonalidades trágicas para retratar a pobreza, a vida, a morte e as relações entre os personagens, numa narrativa construída poeticamente a partir do uso de palavras que, como personagens, constroem e se constroem enquanto real.
Leia AQUI a resenha de “Homens imprudentemente poéticos”.
Selecionamos alguns dos trechos mais incríveis da obra. Confira:
Nos meus ossos é a noite de inverno. Dizia e esfregava os cotovelos a fazer o calor possível.
Era como definir uma dor por gratidão.
Passava os dias gritando: musumé, ondes estás. E a menina cega respondia: no teu coração. E a criada insistia: e mais onde. E a menina cega respondia: aqui, junto à pedra.
Queria que ela fosse tão propensa ao sorriso quanto o pudesse ser.
Grotesca e sapiente de suas próprias fealdades e belezas, obrigar a floresta à gentileza de um jardim era ofensivo.
Para Matsu as montanhas podiam fazer promontórios que se suspendessem sobre as aldeias. Braços de pedra que se levantavam entre as nuvens e sombreavam as aldeias. Explicavam-lhe que os cumes demoravam estações inteiras, podiam caminhar primaveras completas para lhes chegar ao cimo, e talvez nem chegassem, porque os homens faziam outra vida diferente da de poder voar. Mas a jovem imaginava o que ouvia segundo o seu próprio tremendismo, por isso julgava que o lugar mais alto das montanhas era uma extremidade de pedra que se alcandorava, coisa de conflituar com as nuvens e os pássaros maiores. Diferente de serem os homens voadores, ela inventava que seriam as montanhas terras capazes de pairar.
Por vezes, escolhiam a fome em troca de um mínimo de sossego. A felicidade podia acontecer num ínfimo instante, ainda que a fome se mantivesse e até a sentença para sofrer. O sofrimento nunca impediria alguém de ser feliz.
A menina, habitante sobretudo dos sonhos, disse: havíamos de ter um jardim seco. Um de pedras que fizesse o ondulado do mar. Tão bem alinhado que fosse um desenho perfeito por onde poderíamos percorrer os dedos. A criada perguntou: seco. A cega respondeu: teríamos sempre lágrimas para o molhar. E sorriu.
Para explicar que ser quem era já pressupunha mais raiz do que os troncos a servir de alicerces. Já tinha tanta pertença quanto a pedra despontando entre as madeiras do chão. Era dali. Iria a lugar nenhum porque nunca se levaria por completo. Nunca iria.
(…) havia pouco para saber, e o que contasse era triste. De tristezas estavam ricos.
Bateu com a pedra, e havia uma raiva crescente, uma incontrolável vontade de ferir algo que se ausentava da realidade tangível do mundo. A senhora Kame lhe tomou o pulso, para que aceitasse a medida da morte. O besouro nunca morreria mais do que já morrera, e as ideias nunca terminariam à força de um golpe, por mais desaustinado que fosse desferido.
Estavam vivos e juntos, pensavam. Estavam vivos e juntos. A felicidade poderia ser aquilo.
Há uma alegria naquele bocado de morte.
Por vezes, a quem lhe perguntasse que ofício tinha, o artesão respondia: minto às flores. Podia dizer que mentia aos pássaros. Podia dizer que mentia. Era um homem a esconder a verdade.
Amar é uma proibição de estar só.
Edição: Globo Livros – Biblioteca Azul, 2016